sábado, 5 de dezembro de 2009

Somos Felizes...?

"...somos felizes. acabámos de pagar a casa em outubro, fechámos a marquise, substituímos a alcatifa por tacos, nenhum de nós foi despedido, as prestações do opel estão no fim. somos felizes: preferimos a mesma novela, nunca discutimos por causa do comando, quando compras a «tv guia» sublinhas a encarnado os programas que me interessam, lembras-te sempre da hora daquela série policial que eu gosto tanto, com o preto cheio de anéis a dar cabo dos italianos da mafia.
somos felizes: aos domingos vamos ao feijó visitar a tua mãe, ficas a conversar com ela na cozinha e eu passeio com o indiano, filho de uma senhora que mora lá no pátio; assistimos ao básquete dos sobrinhos dele no pavilhão polivalente, comemos uma salada de polvo no café durante os resumos do futebol, e voltamos para almada à noite, com o jantar que a tua mãe nos deu numa marmita embrulhada no «record», a tempo de assistir às perguntas sobre «factos e personalidades» do concurso em que a apresentadora se parece com a tua prima beatriz, a que montou um pronto-a-vestir no centro comercial do prior velho.
somos felizes. a prova de que somos felizes é que comprámos o cão no mês passado e foi por causa do cão que tirámos a alcatifa, que as unhas do animalzinho rasparam de tal forma que já se notava o cimento do construtor por baixo. andamos a ensiná-lo a não estragar as cortinas, pusemos-lhe uma coleira contra as pulgas depois de uma semana inteira a coçarmo-nos sem entender porquê, passados dois dias o fernando começou a coçar-se também e a acusar-me de cheirar a cachorro e levar pulgas para a repartição, o chefe avisou-me do fundo
- veja-me lá isso, antunes, de modo que pus também uma coleira contra as pulgas debaixo da camisa e o dionísio, espantado - deste em cónego ou quê? e eu, envergonhado, a abotoar o colarinho - é uma coisa chinesa para o reumatismo, a jóia magnética vitafor é uma porcaria ao pé disto e como nas finanças se respeitam o reumatismo e as coisas chinesas, nunca mais me maçaram.
às segundas, quartas e sextas sou eu que vou lá abaixo levar o cão a fazer chichi contra a palmeira, às terças, quintas e sábados é a tua vez, e o que não vai lá abaixo fica à janela a olhar o bichinho a cheirar os pneus dos automóveis, com um ar sério de quem resolve problemas de palavras cruzadas que os cães têm sempre que farejam postes e unos.
somos felizes. por isso não me preocupei no sábado com o animal, muito entretido na praceta, e tu atrás dele, de trela enrolada na mão, sem olhares para cima nem dizeres adeus, a andares devagarinho até desapareceres na travessa para a estação dos barcos. foi anteontem. às onze horas tirei o cozido do forno e comi sozinho. ontem também. hoje também. não levaste roupa, nem pinturas, nem a fotografia do teu pai, nada.
ainda há bocadinho acabei de gravar o episódio da novela para ti. a tua mãe telefonou, a saber porque é que não fomos ao feijó, e eu disse-lhe que daqui a nada lhe ligavas. porque tenho a certeza de que tu não te foste embora, visto sermos felizes. tão felizes que um dia destes vou comprar um micro-ondas para, se chegares a casa, teres a comida quente à tua espera."


( António Lobo Antunes )

Sem comentários: