quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Difícil poema de amor

"não calhasse morrer um de nós primeiro que o outro porque ambos ao mesmo tempo será impossível enquanto não houver relógios que meçam este tempo e as horas fielmente se adiantarem e atrasarem. (...)
o teu amor espreita o meu corpo de longe. de longe por gestos lhe respondo. tenho raízes nos vulcões ternuras íntimas medos reclusos beijos nos dentes. (...)
inventei a nossa morte em toda a impossível extensão das palavras. aterrorizei-me segundos a fio enquanto em corpo nu ouvindo-me adormecias devagar. com a precaução de quem tem flores fechadas no peito passeei de noite pela casa. um fantasma forçou uma porta atrás de mim. gemendo como um animal estrangulado acordei-te. enterro o meu terror como um alfange na terra. porque é preciso ter medo bastante para correr bastante toda a casa celebrar bastantes missas negras atravessar bastante todas as ruas com demónios privados nas esquinas. só o amor tem uma voz e um gesto mesmo no rosto da ideia que me impus da morte. és tu tão 'única' como a noite é um astro. sobre a poeira que te cobre o peito deixo o meu cartão de visita o meu nome profissão morada telefone.
disse-te: eis-me.
e decepei-te a cabeça de um só golpe.
não queria matar-te. choro. eis-me! eis-me!"



'difícil poema de amor' ['terra imóvel', portugália editora, colecção novos poetas, 1ªedição, 1964] - luiza neto jorge

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